29.8.14

Mais intermitências

Enquanto trabalho noite adentro, parei um pouco pra assistir a uma entrevista no Jô Soares, com o historiador Jeovah Mendes, especialista em religiões. É reprise, de 2001, e fiquei aqui na dúvida se eu já tinha visto essa entrevista na época ou não. Uma sensação estranha (que não foi a déjà vu) de me transportar para aquela época, mais de dez anos atrás. Eu estava no primeiro ano da faculdade, morando com os meus pais na Casa Verde, dividindo o quarto com o meu irmão (e a gente sempre via o Jô de noite).
Pode parecer clichê, ou meio besta, mas se alguém me falasse que minha vida de lá para cá seria assim e assado, acho que não acreditaria. Nos fracassos, nos sucessos, nas frustrações, nas pessoas que surgiram na minha vida, algumas -- que eu achava que durariam tanto -- que desapareceram completamente, outras que permanecem, a saber, meus amigos do colegial em especial. As trocentas casas que já morei, as duas cidades, os dois países. E lembrei dos detalhes daquele apartamento na rua Relíquia, em 2001, que eu ficava de madrugada de fone de ouvido com meu discman na janela da sala olhando o movimento quase inexistente da rua. E o meu primeiro computador ali, com internet pífia. Meus avós maternos ainda eram vivos e nos visitavam sempre.
Hoje, sozinho aqui na sala do apartamento onde moro no centro, trabalhando, vendo o historiador falar em jainismo, hinduísmo, deuses que adoram insetos, eu penso o quanto tudo aquilo pra mim na época não devia fazer sentido como faz hoje, que gosto tanto de religiões orientais, em especial as da Índia. E me transporto para daqui alguns anos e me vejo como uma nova pessoa, distante, como um amigo que ficou no passado, ali na Bela Vista, que se apaixonou pela Índia quando conheceu Délhi. E vou me lembrar de mim, dele, com muita saudade; deste apartamento, do relógio em forma de coruja cujo tic-tac me guia noites a fio nessas viagens pelo tempo, pelo espaço, pelas pessoas em quem penso, pelas pessoas que virei, fui, tentei ser. As intermitências do coração, que fala o Proust; as casas, as estradas, as avenidas, são fugidias, como os anos que passam.

19.8.14

A ilha

Nós dois fizemos as contas. Da parte dela, decidiu que era hora de eu partir, e da minha parte, que eu a havia perdido. Porque, afinal de contas, eu nunca ia sair daquela ilha. Minha ideia era morrer por lá, completamente sozinho. Doente, depois de alguma queda, qualquer coisa. A única escolha que eu tinha, a única coisa sobre a qual eu tinha um mínimo de controle era quando, como e onde isso poderia acontecer. Então eu amarrei uma corda no alto para me enforcar, mas a corda arrebentou. Percebi que eu não conseguia sequer me matar, que eu não tinha nenhum poder, nenhum controle de nada. E soube que, de algum modo, eu tinha que continuar vivo. Continuar respirando. Mesmo que eu não tivesse mais muitos motivos para isso. Na minha lógica, eu jurava que jamais veria esse lugar de novo. E aqui estou eu, de volta. Onde nasci, falando com vocês. E eu a perdi completamente. Estou muito triste por não tê-la mais comigo. Mas muito grato por ela ter estado, de algum modo, comigo naquela ilha. E agora sei o que devo fazer: continuar respirando. Já que amanhã o sol vai nascer de novo. E quem sabe o que a maré pode nos trazer.

(monólogo adaptado por mim do filme Náufrago, com o Tom Hanks)